sábado, 26 de julho de 2008

Fragmentos da Carta a D.


"Se você se une a alguém para a vida inteira, os dois estão pondo em comum sua vida e deixarão de fazer o que divide ou contraria a união. A construção do casal é um projeto comum aos dois, e vocês nunca terminarão de confirmá-lo de adaptá-lo e de reorientá-lo em função das situações que forem mudando. Nós seremos o que fizermos juntos."

"O amor é o fascínio recíproco de duas pessoas por aquilo que elas têm de menos dizível, de menos socializável; de refratário aos papéis e imagens delas mesmas que a sociedade lhes impõe, aos pertencimentos culturais."

"Compreendi, com você que o prazer não é algo que se tome ou que se dê. Ele é um jeito de dar-se e depedir ao outro a doação de si. Nós nos doamos inteiramente um ao outro"

"Fomos feitos para nos proteger mutuamente contra ambos, e precisávamos criar juntos, um pelo outro, o lugar no mundo que originalmente nos tinha sido negado. Para isso, no entanto, seria necessário que o nosso amor fosse também um pacto para a vida inteira"

"Você acabou de fazer oitenta e dois anos. Continua bela, graciosa e desejável. Faz cinquenta e oito anos que vivemos juntos, e eu amo você mais do que nunca. Recentemente, eu me apaixonei por você mais uma vez, e sinto em mim, de novo, um vazio devorador, que só o seu corpo estreitado contra o meu pode preencher. À noite eu vejo, às vezes, a silhueta de um homem que, numa estrada vazia e numa paisagem deserta, anda atás de um carro fúnebre. Eu sou esse homem. É você que esse carro leva. Não quero assistir à sua cremação ; nem quero receber a urna com as suas cinzas. Ouço a voz de Kathleen Ferrier cantando "Die Welt ist leer, Ich will nicht leben mehr" (O mundo está vazio, não quero mais viver), e desespero. Eu vigio a sua respiração, minha mão toca você. Nós desejariamos não sobreviver à morte um do outro. Dissemo-nos sempre, por impossível que seja, que, se tivéssemos uma segunda vida iríamos querer passá-la juntos."

André Gorz, um dos grandes pensadores do séc. XX e ativista dos episódios de Maio de 68 em Paris, escreve esta carta, última carta (que pode ser encontrada em forma de livro - Carta a D. História de um amor, Cossac e Naify), para sua esposa Dorine que sofria de aracnoidite e câncer. O casal, ao ver sua vida a dois definhar lentamente com a vida de Dorien, decide cometer o suicídio. Os corpos de André e Dorine foram encontrados em 22 de setembro de 2007 em sua casa, em Vonung, repousando lado a lado. Na porta só havia um cartaz dizendo: avisem a polícia. E não houve entre nós que, sabendo desta história, não chorasse.

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