sexta-feira, 30 de novembro de 2007

Sede

O amor é sede depois de se ter bem bebido

Guimarães Rosa

Nos telhados da vida

Por esses dias lembrei que, quando criança, o lugar onde mais brincava era uma escola. Minha vó tinha um colégio, bem pertinho de minha casa, onde minha mãe era secretária. Sendo assim vivia por lá e o meu passatempo mais corriqueiro era brincar nas salas de aula com o giz e os quadros: Já se plantava dentro de mim uma vocação, da qual tentei, numa época, fugir, mas pra qual voltei, ainda a tempo. Lembrei, mais, que minha aventura principal era subir no telhado dessa escola. O telhado era grande e podia-se chegar até o de um vizinho, sobre sua garagem, e se aproximar do quintal de outro, onde havia árvores frondosas habitados por macacos sagüis. Aquilo tinha um sentido de liberdade enorme pra mim, ao fazer algo que não faria em casa sob a supervisão dos meus pais (Aliás, a casa de minha vó era o local onde fazia estas coisas como assar o queijo coalho espetado num garfo à beira do fogão, sair de casa sem ter que dizer pra onde e jogar bola no campinho da frente sem ter hora pra voltar). No telhado eu sonhava acordado, a adrenalina da aventura me fazia sentir um desbravador de territórios inalcançados e inimagináveis: Era o meu “Fantástico mundo de Bobby”, minha “Nárnia”. Lá no telhado, eu, mesmo criança, pensava na vida. Sentia-me capaz, cheio de vida pela frente e cheio de projetos a serem realizados. Lá eu era muito mais. Podia tudo, enfrentava tudo, não temia nada. No telhado eu era herói e salvava a mocinha. Eu não tinha receio da vida e das suas intempéries. No telhado as pessoas não me machucavam, nem eu a elas. Lá, no telhado, o amanhã não batia à porta com a incerteza debaixo do braço, porque no telhado eu era amigo das certezas. No telhado não havia a dor e a decepção, porque lá os problemas se resolviam e eu não fugia deles, aliás, eles eram muito pequenos, pois lá de cima eu enxergava o mundo, e os problemas, de igual pra igual. No telhado eu me preocupava com ser e não com ter, em amar e não em ser amado, em sorrir, e não em discutir, em brincar, e não em me preocupar. Preocupar? Não havia este verbete no telhado. Lá só havia um céu mais azul, um sentimento de colher o dia e viajar no tempo seguro nas asas da contemplação do belo, do simples, do que realmente importa. Estou distante do telhado há muito tempo. Deve ser por isso que quase perdi os sonhos que lá sonhava, e a realidade pintou-se de dureza e crueldade, parecendo ser um monstro maior do que realmente o é. Estou precisando do telhado urgentemente pra renovar meu estoque de esperança e pra entender que a vida, daqui de baixo também nos sorri e acolhe, nos abraça e nos envolve através dos braços dos que nos têm como preciosidade incomercializável, insubstituível, imexível, imutável. Se, então, você passar e me ver em cima do telhado, por favor, não me peça pra descer nem me ache um insensato: É que de lá eu vejo a vida passar com mais graça, e o lamento vira festa, e o pranto vira canto, e o choro, encanto. Lá de cima, no telhado...

sexta-feira, 23 de novembro de 2007

Pensar em quem se ama

"Mas, pensar na pessoa que se ama, é como querer ficar à beira d'água esperando que o riacho, alguma hora, pousoso esbarre de correr."
Guimarães Rosa

quinta-feira, 22 de novembro de 2007

Na próxima esquina

Hoje minha alma é angústia
e dúvida
e medo
e dor
e incerteza
É um não sei como nem por que
É um “sei lá, entende”
E é desilusão
e busca
e pranto
e vontade de sumir
e de viver minha vida novamente
É... Hoje eu acordei com vontade de voltar no tempo!
Mas as horas são nossas inimigas, cada minuto é passado, e tudo o que eu faço
tudo o que eu penso
tudo o que eu digo
volta-se contra mim com uma imparcialidade fria e pragmática
Agora só quero dormir e esquecer
Amanhã, quem sabe, um broto de esperança possa tentar me convencer
de que a vida não nos espreita na próxima esquina, de tocaia pra ver se agente num tá sorrindo demais, e corre pra preparar um armadilha daquelas que não há como não cair
E agente cai
e chora
e levanta
e sorri de novo
e a vida corre para a próxima esquina...

quarta-feira, 21 de novembro de 2007

Se for...

Se for pra sorrir, que seja com Chico Buarque
Se for pra chorar, que seja com Cartola
Se for pra se impressionar, que seja com Clarice Lispector
Se for pra se encantar, que seja com Marisa Monte
Se for pra beber, que seja com Vinicius de Moraes
Se for pra instigar, que seja com Nação
Se for pra farrear, que seja com a Academia da Berlinda
Se for pra ficar em casa, que seja com Quintana
Se for pra viajar, que seja com os Hermanos
Se for pra acordar, que seja com Maria Bethânia
Se for pra voar, que seja com Drummond
Se for pra se revoltar, que seja com Marx
Se for pra lutar, que seja com Florestan
Se for ter esperança, que seja com Paulo Freire
Se for pra gostar mais da vida, que seja com Rubem Alves
Se for pra sonhar, que seja com Luther King
Se for pra rir de um idiota, que seja de Diogo Mainardi
Se for pra falar: “Você não me engana!”, que seja pra Arnaldo Jabor
Se for pra perder a paciência, que seja com Faustão
Se for pra bradar: “Você, sim, é um fanfarrão!”, que seja com o Capitão Nascimento
Se for pra dizer: “Tenha vergonha mesmo é da desigualdade”, que seja a Luciano Huck
Se for pra gritar: “Pega ladrão!”, que seja no Congresso
Se for pra fazer de novo, que seja o Tzedaka
Se for pra estudar pra sempre, que seja Sociologia
Se for pra sentir saudades, que seja de Ana Júlia
Se for pra se orgulhar, que seja dos meus pais
Se for pra brigar e reconciliar, que seja com Diogo
Se for pra parecer comigo, que seja Emanuel
Se for pra sair e conversar, que seja com Wellington
Se for pra falar sério, que seja com Sávio
Se for pra dar gargalhadas, que seja com Nemésio
Se for pra ser amigo de mulher, que seja de Delane, Ana Teresa e Mônica
Se for para o tempo parar, que seja com Juli
Se for pra amar, que seja a Deus
Se for pra viver, que seja intensamente
Se for pra morrer, que seja feliz!!!

Vai gostar de escrever assim...


“Cheguei mesmo à conclusão de que escrever é a coisa que mais desejo no mundo, mesmo mais que amor.”

Clarice Lispector

Minha reconciliação com Quintana

Tinha brigado com Quintana. Foi quando li um de seus livros, o qual me incomodou demais: Ficava com insônia. O motivo da reconciliação vem logo abaixo:

Poeminha Sentimental

O meu amor, o meu amor, Maria
É como um fio telegráfico da estrada
Aonde vêm pousar as andorinhas...
De vez em quando chega uma
E canta(Não sei se as andorinhas cantam, mas vá lá!)
Canta e vai-se embora
Outra, nem isso,
Mal chega, vai-se embora.
A última que passou
Limitou-se a fazer cocô
No meu pobre fio de vida!
No entanto, Maria, o meu amor é sempre o mesmo:
As andorinhas é que mudam.


Mário Quintana

sexta-feira, 16 de novembro de 2007

Utopia Real

Você já imaginou Petrúcio Amorim cantando numa igreja evangélica? E as pessoas formando pares pra dançar? Só no “boi com sede bebe lama, barriga seca não dá sono...”?
E nesta mesma igreja um grupo de dança, formado por crianças, apresentar uma coreografia dançando frevo?
E o grupo de adolescentes desta mesma igreja coreografando “se os meus joelhos não doessem mais...”?
E trovadores declamando suas poesias?
Repentistas dedilhando suas violas?
Raper´s fazendo sua arte?
Mestre Salu mandando ver na sua rabeca encantada?
Presenciar a reconciliação do evangelho com a cultura popular, sem a divisão maniqueísta criada pelos religiosos (argh!) entre o que é santo e o que é profano?
Eu achava que só veria isto acontecendo quando moresse: Quando chegasse ao céu e visse os anjos tocando alfaia, outros numa roda de samba, outros, ainda, frevando para a eternidade. Não agüento mais (não agüento mesmo!) a hipocrisia nojenta dos fariseus de plantão dizendo o que vem de Deus e o que não vem. Isso me dá asco!
E mais...
Ver pastores e padres juntos (isso mesmo!) discutindo temas como: Trabalho escravo, prostituição infantil, entre outras coisas, para lembrarmos que a igreja tem a missão não só de transformar a alma do homem, a sua dimensão espiritual, mas transformar também as dimensões bio-psico-sociais deste mesmo homem (o homem todo, em todo seu contexto), anunciando a justiça e denunciando a injustiça?
Você nunca viu nada disso que falei?
Pois eu vi. Eu estava lá. Ninguém me contou.
Quer ver também?
Vá à Primeira Igreja Batista em Bultrins: Um pedaço do céu na terra!

Escrito por ocasião do VI Fórum Popular de Reflexão Teológica realizado pela igreja citada no texto.

quinta-feira, 15 de novembro de 2007

Tentativas

Queria escrever algo que ficasse gravado no teu coração
Queria coisificar sentimentos e permitir que, pelo tato, você sentisse o que só pode ser percebido nas letras de uma canção, de um poema,ou na amplitude de um olhar.
Queria reificar meu sorriso, brotando só de saber que vou te ver, nestas palavras. Transpor para as letras a ebulição na minha visão, a perturbação que há no meu tato, a confusão causada em meu olfato, quando vejo teu cheiro, sinto teus olhos e cheiro tua boca como um boticário que degusta um tesouro de olhos vendados.
Não consigo colocar isso no papel. As letras param de me obedecer assim que prenunciam minha tentativa de sobre este assunto escrever. Elas fogem, brincam comigo rindo da minha angústia de não conseguir me expressar à altura. Quem sabe se tentasse criar uma equação!? Os números não falam, mas podem representar alguma coisa: ainda que seja uma tentativa, já aviso frustrada, de quantificar toda esta sinestesia.
Quem sabe se tentasse falar.Porém, acho que pareceria mais com um ogro do que com um poeta. Não, não... Fica com estas letras mesmo por enquanto. Tenta perceber nas suas entrelinhas aquilo que tento falar, com todos os meus sentidos, quando estamos juntos.
Quando não estou mais só.

quarta-feira, 14 de novembro de 2007

É Proibido Pensar

Eu queria ter escrito esta música sobre a "mesmice-medíocre-interesseira-neo-pentescostal" das igrejas evangélicas brasileiras. Mas foi João Alexandre (um remanescente da boa música evangélica) quem a fez:

Procuro alguém pra resolver meu problema
Pois não consigo me encaixar nesse esquema
São sempre variações do mesmo tema: meras repetições!

A extravagância vem de todos os lados e faz chover profetas apaixonados
Morrendo em pé, rompendo a fé dos cansados que ouvem suas canções

Estar de bem com a vida é muito mais que renascer
Deus já me deu sua Palavra e é por ela que ainda guio o meu viver!

Reconstruindo o que Jesus derrubou, recosturando o véu que a cruz já rasgou
Ressuscitando a lei, pisando na graça, negociando com Deus!

No show da fé milagre é tão natural
Que até pregar com a mesma voz é normal
Nesse evangeliquês universal
Se apossando dos céus

Estão distante do trono,
caçadores de Deus ao som de um shofar
E mais um ídolo importado dita as regras para nos escravizar:
É proibido pensar!

Sobre leões e cordeiros


“Leões e Cordeiros”, novo filme de Robert Redford, com Tom Cruise e Meryl Streep, além do próprio Redford, no elenco fala sobre crianças que entram escondidas (pela porta de saída) numa sala de cinema, e de como elas são expulsas truculentamente por alguns dos que assistiam ao filme.
Mas... Um filme inteiro sobre isso?
Calma! O filme trata da Guerra no Iraque. De como o governo americano vendeu à população uma mentira, pintando uma batalha de interesses escusos (capitalistas e eleitoreiros), de um patriotismo e até (ou seria principalmente?) de uma religiosidade fundamentalista propagadora de uma pretensa autoridade dada, por Deus, aos EUA para vencer a guerra contra o terror. Mais... O filme retrata a relação promíscua entre governo e mídia e o poder de manipulação desta sobre a população (Este, pra mim, é realmente o principal tema do filme). Foi a mídia americana que, como um alquimista, transformou podridão em ouro e conseguiu conduzir o patriotismo americano numa aprovação à guerra, vendendo a inverdade da presença de armas nucleares em território iraquiano. Muitos, os inocentes, jovens soldados, morrem acreditando numa guerra legítima sem se perceberem como peças de um conflito que só serve para girar a roda da indústria da guerra e da máquina de eleição americana: Lucram os leões, morrem os cordeiros. Por aqui, o poder alienante da mídia funciona com tanta eficiência e eficácia quanto do lado de lá. A superioridade de classe está tão impregnada na mente de nossa sociedade que é muito difícil, quase impossível, des-naturalizar esta situação. Na cabeça do brasileiro está entalhada uma superioridade do rico sobre o pobre, do branco sobre o negro, do homem sobre a mulher. A burguesia somente se manifesta contra as mazelas que assolam nosso país quando suas fortalezas em forma de condomínios fechados são transpostas, seus relógios rolex são roubados, seus direitos de consumidor de futilidades são transgredidos ou suas salas de cinema são invadidas: Enquanto assistíamos ao filme, algumas crianças, por pura brincadeira e aventura, entraram na sala e passaram a brincar lá dentro. Um dos que assistiam, sob os gritos de “isso mesmo!”, “leva ele!”, após os garotos terem feito isto uma segunda vez, arrastou pelo braço uma das crianças até o lado de fora, enquanto as outras foram expulsas aos gritos. Lembro-me de alguém ter chamado a maiorzinha de irresponsável (uma criança!). Isto teria sido feito se as crianças não estivessem, nitidamente, trajando roupas que os denunciavam como membros da classe baixa de nossa sociedade, provavelmente oriundas das favelas que circundam o shopping onde estão as salas? A mesma violência (sim, violência!) teria sido utilizada se as crianças não fossem negras? De quem é a culpa? Das crianças, ou dos administradores da sala que não deixaram a porta de saída trancada? A atitude violenta contra as crianças, baseada no direito à propriedade (afinal, foram pagos R$ 16,00 para se ter acesso àquela sala) e na superioridade racial e de classe, é injustificável.
Refletir além do que é propagado pela indústria da comunicação é imprescindível para entendermos os papéis vividos em nossa sociedade. Percebermos quando as notícias são utilizadas como meio de expressão dos interesses de uma classe é indispensável para respondermos corretamente as perguntas:
Quem são os leões?
Quem são os cordeiros?
A injustiça assola o país onde encontramos um dos maiores abismos entre ricos e pobres no mundo. Enquanto isso, os aparelhos ideológicos a serviço da legitimação da injustiça cumprem o seu papel de ratificar, quase que subliminarmente, atitudes “faca na caveira” contra os desprovidos do mundo. Eu saí da sala de cinema com a minha imaginação sociológica aguçada, meu clamor por justiça renovado, minha indignação contra a injustiça reforçada, com a minha batalha contra a manipulação da mídia re-travada, e uma oração na cabeça:
Dá atenção à tua aliança, porque de antros de violência se enchem os lugares sombrios do país. Não deixe que o oprimido se retire humilhado! Faze que o pobre e o necessitado louvem o teu nome. Salmos 74: 20,21


Cleonardo

terça-feira, 13 de novembro de 2007

Wellington disse...

Essa história de samba tá dando o que falar. Transponho um dos comentários do meu texto "O feitiço do samba". Wellington (meu grande amigo-irmão) encarnou tão bem o espírito do samba que esse comentário tinha que virar postagem.

Lá vai...

Também gosto de samba ...sou um bom sujeito!
Cinco sambas marcaram a minha vida:"As rosas não falam" de Cartola ...Minha avó paterna, a quem eu amava muito, se chamava Rosa. No seu velório, encomendei uma corbelha onde estava escrito "... simplesmente, as rosas exalam o perfume que roubam de ti ...
"Saygon" De quem é mesmo esta jóia da MPB? Ouvia quase todos os dias na voz de Beth Carvalho no meu apartamento... meu primeiro apartamento que comprei e fui morar logo depois que casei. Saygon , a cidade, graças a este samba, foi transformada em um estado de espírito.
"Ah, Ah, Papai!" de minha autoria. Música, digo, samba de ninar que eu fiz para o meu filho e cantava para ele ainda na barriga da mãe. Quando ele nasceu e acordava de madrugada eu cantava o sambinha baixinho colocando o ouvido dele na minha bochecha pra dar um som acústico .... rsrsrsr. Ele calava e dormia.
"Nosso desejo", outro samba de minha autoria ... Engraçado, todas as vezes que compus na vida (exatamente duas vezes), compus sambas. Vc lembra como começa? "As portas da congregação ....
E finalmente, "Meu Guri". Este é o samba! Todas as vezes que eu o canto ou o ouço ou o leio, eu choro , ao menos no coração. Nada dói mais que a dor do pai do Guri. Citando um outro sambão ... eu diria que "a saudade dele está doendo em mim...".
Obrigado por lembrar de enaltecer o nosso samba. Aliás, tem uma música evangélica, que a minha ignorância e descuido me fez esquecer o autor que diz "Na América do Norte, os norte-americanos, usam o seu negro spiritual para louvar. Em Angola, os nativos irmãos de lá, usam seus atabaques para adorar. Por que será que aqui no Brasil, nós não podemos louvar com a nossa cultura? Se Deus criou todas as coisas. Criou a música e é pra gente louvar. Nas minhas veias, corre sangue brasileiro, .... Se eu nasci num país verde e amarelo, azul-anil, quero louvar a Deus com o samba do Brasil! Louvai a Deus ao som da cuíca. Louvai-o com o reco-reco, com agogô, com o surdo e pandeiro, LOUVAI A DEUS COM O SAMBA BRASILEIRO!!!!!!

sexta-feira, 2 de novembro de 2007

Boca de forno

- Boca de forno
- Forno!!!
- Tirando bolo
- Bolo!!!
- Jacarandá
- Dá!!!
- Se eu mandar
- Vou!!!
- Se não for?
- Apanha!!!
- Seu Rei mandou dizer...

Essa brincadeira de criança é coisa muito séria. Não é isso que tentam fazer conosco o tempo inteiro? Sejam as religiões (protestante ou católica), sejam os meios de comunicação de massa (Época, Veja, Globo e afins...). Ninguém merece conversar com um fundamentalista, entupido de dogmas, tanto quanto ninguém merece conversar com alguém que tem as suas opiniões baseadas, apenas, no triunvirato da alienação Globo/Época/Veja. Precisamos gritar: “Pense, por favor, pense!” Mas o grito que vem de lá é muito forte, quase ensurdecedor: Boca de forno!!!...

Sobre pássaros e gaiolas


...Deus criou os pássaros.
As religiões criaram as gaiolas. As gaiolas criadas pelas religiões são feitas com palavras. Elas têm o nome de dogmas. Dogmas são gaiolas de palavras que pretendem prender o Pássaro...
...Escrevi, para minha filha pequena, uma estória sobre um Pássaro Encantado e uma Menina. Pássaro e Menina se amavam. Mas sempre chegava o momento que o pássaro dizia: “Preciso ir”. A Menina chorava e dizia: “Não vá. Nós nos amamos tanto!” O Pássaro respondia: “Eu preciso ir para ter saudades. Porque o meu encanto nasce da saudade!” E partia. A Menina, então, teve uma idéia perversa: engaiolar o Pássaro para que ele nunca mais partisse. E assim ela fez. Quando o Pássaro voltou, cheio de penas de novas cores, enquanto ele dormiu, ela o engaiolou numa linda gaiola de prata. Ao acordar o Pássaro deu um grito de dor. “Menina, vou perder meu encanto. Vamos perder o amor!” E assim aconteceu. Foram-se as cores. Foram-se as estórias que ele contava. Foi-se o amor.
Escrevi esta estória porque eu ia partir para uma longa viagem e minha filha de quatro anos estava muito triste. Depois de publicada fiquei sabendo que meus colegas terapeutas a estavam usando para lidar com as relações amorosas, maridos engaiolando esposas, esposas engaiolando maridos, maridos querendo voar, esposas querendo voar... Aprovei. Aí um amigo me disse: “Que linda estória você escreveu sobre Deus!” Perguntei: “Que estória?” Ele me respondeu: “A da Menina e o Pássaro encantado. Pois o Pássaro encantado não é Deus que as religiões tentam engaiolar?”
Um Deus engaiolado nas gaiolas de palavras chamadas dogmas é sempre menor que a gaiola. Esse Deus não é pássaro que voa, é pássaro empalhado.
Deus mora na saudade.
Deus mora na nostalgia.
...Deus não nos deu asas. Deu-nos o pensamento. Voamos nas asas do pensamento... O pensamento são as asas que Deus nos deu.
Assim, tudo aquilo que proíbe o vôo livre do pensamento é contrário ao nosso destino. A questão não é pensar certo ou pensar errado. Afinal, quem sabe o que é certo e o que é errado? A questão é simplesmente pensar. Sem pensamento livre a alma está engaiolada.
...A fato é que a história do Cristianismo está cheia de gaiolas. Quantos foram mortos pelo crime de pensar diferente! Desse crime tanto católicos quanto protestantes são culpados. Os mortos foram aqueles que ousaram pensar os seus próprios pensamentos. Os mortos foram aqueles que ousaram pensar os seus próprios pensamentos. Pássaros solitários, como os sabiás. Eu prefiro o canto solitário dos sabiás ao canto gregário das maritacas, todas repetindo a mesma coisa...


Rubem Alves

O silêncio que precede a partida

É nesse momento, no silêncio que precede a partida, às vezes de alguns minutos, ou até segundos apenas, quando a consciência da partida toma corpo, onde a dor dói mais forte. É quando a cruel saudade encontra a casa ornamentada para fazer morada. Então, só há como sorrir quando lembro do teu sorriso. Só há como vencer o silêncio quando lembro do barulho que você faz (E que barulho!). “Quem te vê passar assim por mim não sabe o que é sofrer”, porque você passou, mas voltou logo. E agora, nesta casa, ficou um silêncio impreenchível que parece ser maior que o silêncio que precede a partida... O silêncio da ausência...
Escrito após Ana Júlia (minha sobrinha) viajar de volta a Belo Horizonte